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Gosto de escrever pois a sensação de liberdade quando o faço é indescritível. Escrevo o que sinto, o que penso, o que gostaria que acontecesse. Isto significa que os meus textos são imaginados, contudo, possuindo o seu quê de verdade. I hope that you like it**

domingo, 5 de julho de 2009

Solidão**




“A vida não facilita em nada a minha tarefa de não sofrer e não chorar.

A última situação mais flagrante passou-se numa enfermaria. A D. Maria (imaginemos que se chama assim) tinha 90 anos e encontrava-se internada. Tinha caído em sua casa e necessitava de uma intervenção cirúrgica a um dos membros inferiores. Infelizmente, já não se encontrava no seu estado pleno de lucidez, vendo imagens que já não estavam lá, falando de pessoas que se encontravam longe, como se permanecessem junto a ela.
Nessa tarde, tirei um tempinho do meu horário de trabalho para me sentar perto da sua cama. Fiquei a observá-la. Foi intrigante a forma como me olhou. Os seus olhos brilhavam mas, no entanto, era visível neles uma tristeza enorme. Passei-lhe a mão pela cabeça. E de seguida, pelos cabelos. E fiquei assim por um tempo que me pareceu longo mas não o sei dizer ao certo. A D. Maria fechou os olhos e deixou-se embalar pelos meus gestos. Nessa altura, senti um ardor nos olhos e a visão começou-me a ficar turva. Olhei-a com ternura e fechei os olhos. Algo me escorreu pelo rosto e soube imediatamente o que era. Uma lágrima, teimosa e atrevida, caía sem que eu a pudesse controlar. Quis controlar-me, para que ninguém percebesse o que se passava. E consegui fazê-lo. Dei por mim a pensar na solidão que aquela senhora deveria sentir, sem visitas, sem ninguém que estivesse ao lado dela. E apercebi-me que esta é a realidade de praticamente todos os idosos no nosso país. As pessoas com mais sabedoria e com mais experiências de vida para partilhar, são as que são menos ouvidas, as que menos são consideradas, aquelas por quem falta o maior respeito. Os mais velhos podem fazer birras, comportarem-se como crianças, mas fazem isso apenas e somente para chamar à atenção, para poderem ter carinho e amor, que na maior parte das vezes, é aquilo de que mais carecem. Fiquei a contemplá-la com ternura. O rosto dela parecia acabado, com todas as rugas de expressão devido à idade avançada. A pele estava a perder flexibilidade mas encontrava-se corada. Sentei-me numa cadeira, à sua cabeceira. Ela deu-me a mão e fiquei a fazer-lhe festinhas. De repente, uma madeixa de cabelo fugiu-me para a frente dos olhos, tapando-me a vista direita. A D. Maria levantou a mão, com a fraca força que tinha e, levemente, tentou afastar a franja caída da minha cara. Tentou uma e duas vezes e, ao fim de algumas tentativas, conseguiu vencer o jeito teimoso do meu cabelo e colocá-lo atrás da orelha. Nesse momento, uma lágrima escorreu-me pela face sem autorização. Pedi-lhe licença e levantei-me. Sabia que, após esta lágrima, viriam outra e outra, e não podia chorar ali. Dirigi-me à casa de banho e apeteceu-me gritar e destruir tudo à minha volta. Não é normal que uma pessoa chegue ao fim da sua vida e tenha de ficar sozinha e abandonada à sua sorte, sem amor e carinho, sem respeito e consideração, sem gestos de ternura… Tentei controlar-me e manter a calma. Passei a cara por água fria e tive de ganhar força para permanecer serena. Saí, decidida a enfrentar tudo o que me esperava.”


Testemunho de uma futura Enfermeira

3 comentários:

  1. Infelizmente esta é a realidade do nosso e de todos os outros países.
    Aumentam-nos a esperança média de vida, mas também nos aumentam a idade para a reforma.
    Isto resulta numa "gap" (falha) que provoca que ninguém consiga "tomar conta" dos nossos idosos.
    E claro, não temos Centros de dia e lares do estado. Os privados ou são estupidamente caros ou oferecem condições miseráveis para quem quer passar os seus anos "dourados"...
    É lamentável a situação que todos um dia iremos chegar...
    Bem, chocou-me e ao mesmo tempo não me chocou a situação, porque é uma coisa que se está a tornar corriqueira e qualquer dia tomamos como certo o que se está a passar, o que é terrível!
    Só tenho a dizer que é lamentável e espero que nunca aconteça comigo nem aos meus.
    Coragem futura sra Enfermeira.
    Beijinhos**

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  2. E assim nasce, cresce e floresce o sentimento de impotência, de fraqueza, o espinho da arte daquele que está munido de todos os conhecimentos e saberes necessários para cuidar...
    Assim se conhece a verdadeira dor da profissão...
    Daí que só haja UM titulo que nos define, que nos torna unicos: Enfermeiro/a

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  3. Gostava de não ser pessimista, mas não auguro nada de bom para os tempos que aí vêm. O meu conselho é que não te sintas tão melindrada, porque o teu relato é uma questão de pormenor, muito sentido, porque foi à tua volta; o mundo é fértil em situações de desumanidade extrema, sem que ninguém (ou quase ninguém) faça nada por isso. Somos um rebanho de cordeiros sem pastor e sem cão.

    MIFÁLIA

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